o retrato escrito de meus amados
O
retrato escrito de meus amados
Genevive Spartamoon, esse era o nome
dela, jovem, bela, sorriso encantador. Ela sabia as palavras certas para cada
momento seu, ela sabia curar a dor com aquele sorriso maravilhoso naqueles
tempos tão ásperos e sombrios.
Os guerreiros das terras distantes, estavam voltando, vinham
com tudo para acabar com o nosso povo, estávamos amedrontados e infelizes,
nunca lutamos sem Genevive, ela era nossa espada mágica nas batalhas, ela dava
as ordens, ela nos guiava, nos preparava e encorajava, saia ferida, mas nunca
derrotada, sempre sobrevivia as batalhas e defendia nosso povo, ela era tudo
para nós, uma mãe, uma professora, uma mestre, uma conselheira e protetora, não
havia nada que ela não faria por nós. Porem em sua última batalha, Genevive já
não era mais a mesma, estava fraca, perdeu seu equilíbrio, a metástase já
estava em estado avançado, mas ela ainda era forte, sabia que partiria em
breve, mas não partiria sem lutar, nasceu guerreira e morreria guerreira. E
assim foi decretado, os guerreiros das terras distantes vieram numa noite
chuvosa, montados em seus cavalos, com suas espadas rangendo nossos muros,
destroçando nossas hortas, matando nossos animais, arrancando as cabeças de
nosso povo e pintando a sangue nossas ruas, roubando do fundo de nossa
garganta, o grito mais pavoroso de todos, aquela noite é o retrato de terror
que guardo até hoje. Eu era uma criança triste naquele dia, foi daí em diante
que me tornei o maior guerreiro de todos os tempos, assumi o posto de Genevive
e me tornei pai de nosso povo, faço por eles o que posso e o que não posso.
Lembro-me de quando meu paizinho me puxou naquela noite sangrenta, eu estava
enrolado num cobertor cinza em farrapos, não éramos ricos no financeiro, mas
éramos ricos no amor, meu paizinho cuidou sempre de mim, mesmo quando Aléka ainda
era viva, a moça que se dizia minha mãe, mas odiava-me, me batia, me gritava
com nomes absurdos, foi ai que o homem mais forte do mundo me tirou dela, meu
paizinho não era biológico, ele apenas me salvou daquela mulher horrível, e me
trouxe para as terras de Genevive, eu tinha 7 anos na época em que vim para cá,
Genevive nos acolheu, nos apresentou ao povo e nos deu trabalho para que não nos faltasse comida na mesa, ela nos
ensinou a lutar, deu ao meu paizinho uma espada velha e antiga feita pelas mãos
do pai dela quando era vivo, e a minha espada, ela ajudou a construir, eu fui
tão feliz naqueles dias, fiquei empolgado e ansioso, estava em um lar novo,
onde gostavam da minha companhia, onde eu sentia-me útil e querido, era
abraçado todos os dias pelo meu paizinho, e ia as aulas de batalhas com
Genevive e as outras crianças, ela nos ensinava muito bem, era a melhor
guerreira e uma mãe maravilhosa para nós. Nas noites frias ela nos reunia perto
do muro, fazíamos um círculo sentados e contávamos histórias sobre tudo, minha
primeira vez na fogueira, ainda pequeno e sem palavras, contei os detalhes de
quando o paizinho me salvou, Genevive me abraçou com tanto amor, as lágrimas
corriam pelos olhos e eu sabia que nunca mais seria mal tratado novamente, escutei
de algumas pessoas sobre as vitórias nas batalhas de Genevive, escutei as
perdas e as dores dos adultos, nenhuma outra criança falou naquela noite.
Dias depois da prosa na fogueira, eles vieram, eu ainda não
podia lutar, não sabia de muitas coisas e era pequeno, mas meu paizinho podia,
e isso me deixava com dor na alma, pois eu corria o risco de perde-lo, e eu não
sabia o que seria da minha vida sem aquele homem maravilhoso que os deuses me
enviaram, era meu anjo da guarda, meu salvador. Lembro-me de quando me puxou,
enrolado no cobertor cinza, todos estavam em correria, em gritos, em dor e
sofrimento, eu assustado corri com ele para o trás de nossa cabana, ele me
deixou com um beijo e uma lanterna, me deu adeus e se foi, fiquei escondido
chorando e pedindo que ele voltasse logo, de longe eu podia ouvir a dor que
sentiam. Passei a noite ali, no dia seguinte, congelando de frio, eu sai de meu
esconderijo e fui caminhando faminto para dentro da cabana, meu paizinho não
estava lá, esquentei um copo de leite na lenha e tomei, sai com o cobertor em
busca de alguém que pudesse ajudar encontrar o meu paizinho, eu mesmo o
encontrei , ao lado de seu corpo decapitado, estavam mais dois, uma mulher e
uma criança, eu não conseguia pensar em mais nada, cai em seu corpo chorando e
gritando desesperado, aquilo não poderia estar acontecendo, eu acharia quem fez
aquilo com meu amado homem e faria o mesmo, corri aos prantos para a cabana de
Genevive, ela estava sentada ao lado da cama, com uma ferida enorme, aberta e
sangrando em seu quadril, corri para ajudá-la, mas era tarde, só conseguiu me
dizer “a espada mágica é sua, vá em busca dela.” Eu não queria saber de espada
alguma, minha sede de vingança era maior do que uma espada, eu, menino magro
sem forças para lutar, naquele momento só queria matar a socos todos que me
tiraram a mulher que eu tinha como mãe, e o melhor pai do mundo. As pessoas nas
ruas estavam aos prantos assim como eu, encontrando seus entes queridos mortos,
feridos, eu sentei ao lado de Genevive e só conseguia lembrar do dia em que
fizemos minha espada, em uma temperatura muito alta, nós suávamos e riamos, ela
repetia que éramos os porquinhos das espadas, pela situação de nossa roupa e
estado de nosso corpo derretendo, ela moldou comigo a espada, e a lamina estava
lá, perfeita, do jeito que eu imaginava que seria, tudo feito pelas mãos dela
ficava perfeito. Terminamos a minha espada, e era essa que ela dizia ser
mágica, mas na verdade era ela, Genevive era nossa espada mágica, e perdemos
ela, perdemos ela, PERDEMOS ELA, eu não consegui lidar com a perda dela e a de
meu pai, era de mais para mim. Estava ali com seu corpo, só com as lembranças e
as lágrimas. Estela entrou pela saída da cabana, e caiu aos prantos ao ver
nossa querida Genevive caída sem cor e sem respiração. Ela estava doente,
sabíamos que a perderíamos, e ela quis que fosse assim, na batalha, não pela
doença, mas ela sabia que a doença maldita contribuiu para isso. Estela era
moça da sopa, nesses dias frios ela fazia sopa para todos, cada um ajudava com
ingredientes de nossa horta, levávamos os pratos, em fila íamos sendo servidos
pela sopa mais gostosa do mundo, eu nunca havia experimentado nenhum tipo de
sopa antes, Aléka só me servia com pão envelhecido e pasta de amendoim
estragada, que nos dias seguintes sem comer eu passava mal pelo que havia
comido, e apanhava por passar mal sempre.
Eu fiquei na cabana sozinho todos os dias, varria, tirava o
pó, esquentava leite que Estela me trazia fresco, tirado de Titania, Titania
era uma das vacas que criávamos, era nossa, era muito bem tratada, mas
precisávamos de seu leite para sobreviver, de vez em quando ela trazia cestas
com pães frescos que Isaura fazia, e carne que vinha de outros povos, não
matávamos os animais, mas tínhamos que comer, então comprávamos carne de fora,
não era sempre que podíamos, mas as vezes podíamos. Estela ficou com esse cargo
de compras da comunidade, depois que Genevive se foi. Eu só conseguia pensar na
próxima batalha sem ela, eu não sabia qual era o motivo da guerra, mas naquele
momento, eu me preparava para matar, treinava todos os dias com a espada que
fizemos juntos, lembrando de suas dicas, de sua força, determinação, eu teria
que vingar a sua morte e a de meu pai.
O tempo passou, eu completei 16, e já sabia matar alguém, já
podia lutar, esperava por isso, pensei em atacar o povoado distante que nos
atacou anos atrás, mas não fiz, ia continuar esperando por eles, faria eles se
deslocarem até o meu território e tiraria suas vidas como tiraram dos meus
protetores, me fizeram crescer órfão, sozinho e rancoroso. Foi nos meus 16,
carregando lenha perto do lago, que conheci melhor Adalisa, uma negra forte,
cachos longos e molhados, saindo da água com os seios de fora, eu nunca tinha
visto uma mulher sem roupa antes, então a lenha caiu e fez um barulho de
vergonha, ela olhou rapidamente e sorriu para mim, na verdade sorriu de mim,
caiu na gargalhada e saiu nua da agua, ficou parada sorrindo e encarando, eu
sem reação e sem cor, comecei a recolher a lenha para voltar e descansar, ela
caminhou até mim, tocou o meu rosto e disse que me queria, eu corri, corri
depressa com a metade da lenha que havia recolhido, sem olhar para trás, deixei
aquela beleza me querendo e agi feito o moleque que eu era. Dias depois, ela se
tornou a mulher da minha vida, conversamos, bebemos cerveja no bar do Timóteo,
ele mesmo produzia suas cervejas e era maravilhosa. Comecei namorar Adalisa, eu
amava demais aquela mulher, meses depois nos casamos e tivemos gemeos, Alister
e Augusto. Meus filhos que tanto amo, por mais que a vida os tenham tirado de
mim também, naquele mesmo ano do nascimento deles, os povos das terras
distantes voltaram, eu estava despreparado, vulnerável, tinha meus filhos,
minha mulher, minha família, não podia deixá-los sozinhos e sem mim como fiquei
sem Genevive e meu paizinho, não queria isso para meus filhos e minha mulher,
mas tive de sair para batalhar, escondi meus filhos onde meu pai havia me
escondido na noite de sua morte. Adalisa saiu para lutar comigo. No momento em
que os vi, com espadas, matando nosso povo novamente, eu deixei-me cegar e fui
para a guerra, sai ferido, ferido demais, sangrando, Adalisa cuidou de mim, e
me levou ao esconderijo das crianças, e lá estavam eles, sem vida, meu deus, a
dor era imensa, eu nunca tinha passado por isso, a maior e pior tristeza que
existe é perder os filhos numa batalha o qual perdi os pais. Adalisa gritava,
gritou por horas, quando tudo acabou, ela terminou o meu curativo, pegou uma
bolsa de pano, colocou alguns pertences, pegou a minha espada e saiu sem falar
nada, eu não conseguia ir atrás, estava incapaz, a perna esquerda ferida por
uma espada, o ombro dilacerado, não pude fazer nada a não ser chorar e querer a
morte.
Hoje deixo essa carta para vocês, meu povo, 10 anos após
tudo isso, quero minha mulher de volta, vou traze-la com a minha espada e toda
sua mágica, antes minha espada mágica era Genevive, agora é Adalisa.
Até breve.
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