Andar 138

 

Andar 138

 

 

  O hospital era antigo, a estrutura era velha, em alguns locais ainda cheirava mofo, não se via o mofo, mas o cheiro em alguns corredores, era penetrante, fazia com que eu e Lalinda saíssemos espirrando toda vez que tínhamos que descer ao subsolo para arrumar o estoque de remédios para asma, olha a ironia fazendo seus desvios.  Os elevadores foram consertados e aparentavam ser novos, mas só aparentavam mesmo, trabalhávamos ali há anos e sabíamos o quanto aquele lugar era velho e pavoroso. Quando eu fazia o turno da noite, tentava não escutar ruídos, nem qualquer tipo de som que viesse lá debaixo, mas era impossível, tinha que fazer silêncio total para poder escutar os pacientes, o telefone, ou algo emergencial, então, eu acabava escutando todo o resto, mesmo sem querer, às vezes sentia que alguém estava me observando do corredor, bem na porta onde dava aos dois elevadores, mas eu nunca me atrevi a olhar, era muito escuro, e a luz quando funcionava, ficava horas piscando, parecendo aqueles filmes medonhos de terror, onde as luzes piscam e a gente já sabe no que resulta. Sempre fui medrosa, bem precavida, sempre tentando me proteger de tudo, e eu sabia da história daquele antigo hospital, ele foi usado para acolher vítimas da segunda guerra, refugiados, maioria acabou morrendo por lá mesmo, e sabe Deus por onde, pois ali existiam 137 andares, e nunca fomos além do décimo, só podíamos usar os 10 primeiros andares.

      Senhor Caliston, fazia um mistério sobre quem era, mas desconfiávamos que ele era dono daquela bagaça toda. Todos os dias as nove da manhã, ele chegava, com sua bengala, batendo no piso feio e fraco do hospital, com seus óculos escuros, cheiro irreparável de cigarro barato, com seu sobretudo preto e assustador, ele combinava bem com o estilo do hospital, velho, prestes a partir, com cheiro ruim e com certeza uma história tão assustadora quanto a do local. Eu odiava aquele velho, mas eu tinha que respeitá-lo, não sei porque, talvez porque fosse velho, ou não sei, às vezes a nossa mente faz coisas automáticas pela gente, tipo sorrir mentalmente para ele quando ele chega, é um sorriso bem forçado, mas é automático ao ver o rosto daquele miserável.

    Ele nunca nos dá bom dia, ele sorri de canto, com aqueles óculos, nunca sabemos se ele está nos olhando ou não, se é que ele tem olhos, pois em todos esses anos nunca vimos ele sem aqueles óculos velho e antigo colado no rosto, onde talvez tenha olhos. Ele para diante dos elevadores, aperta o botão, escutamos o “PINNNN” de quando a porta se abre, ele entre vagarosamente, e eu o encaro por trás, sem que ele perceba, até a porta se fechar e o elevador subir e subir, nunca sabemos para qual andar ele vai, não o vemos pelo resto do dia, mas sabemos que ele entrou e subiu. Também não sabemos o que ele faz por ali todos os dias, mas sabemos que ele é necessário para o velho hospital. Todos o respeitam, e apenas Gordon, o cirurgião dentista, fala direto com Caliston, nós nunca tivemos a iniciativa de lhe dirigir a palavra, tínhamos medo dele, talvez fosse por isso que eu o odiava, pois além de ter medo do hospital, eu ainda tinha medo do velho do hospital.

 

          A noite em que tudo acabou, foi a noite mais estranha da minha vida, e talvez de todos ali, menos a de Caliston, ele com certeza já teve noites mais estranhas. Lá fora caia gotas grandes e fortes de chuva, o barulho era terrível, os trovões estrondosos, parecia que o mundo estava acabando e que aquele lugar ia cair por terra e deixar todas aquelas pessoas mortas, incluindo a mim e ao velho. Eu me lembro disso até hoje, corri ao quarto da Senhora Dóris, ela tinha medo de chuva, tinha sofrido um acidente de carro horrível provocado pelo seu marido bêbado que veio a falecer no mesmo momento, mas ela culpava a chuva, às vezes gritava alto dizendo que se não fosse pela chuva, seu amado ainda estaria vivo, e ela não estaria naquele lugar pavoroso. A Senhora Dóris ainda se recuperava do acidente, sofreu graves ferimentos, ficou com várias sequelas, e ao perder o marido, juntou-se com a tristeza. Eu sempre me preocupei muito com ela, era a primeira paciente que eu visitava no dia, e a última da noite. Ela gostava muito de mim, diferente da maioria dos enfermeiros, eu sabia mentir bem, sempre dizia à ela que o amor de sua vida aguardava em um lugar melhor, e que sabia que ele sempre pedia para que eu lhe desse boa noite e bom dia, ela sorria, acreditava, as vezes até chorava de emoção, me abraçava, e perguntava se tudo ia ficar bem, independente da minha opinião, eu sempre dizia que sim, pois era assim que para ela as coisas ficariam bem ao escutar isso de outra pessoa.

 

    Então eu corri, com toda velocidade que uma enfermeira adulta, com problemas na coluna, usando um tênis branco e sujo conseguiria correr, corri o que pude, passei pelo corredor onde as luzes piscavam, escutando os barulhos fortes da chuva, quanto mais eu corria, mais eu sentia que alguém me seguia, mas era vida ou morte, nada era mais importante naquele momento do que acalmar a senhora Dóris, ela gostava muito de mim, eu não poderia deixá-la sofrer mais do que já estava sofrendo. Quando cheguei no quarto, as mãos pálidas dela já estavam penduradas para fora da cama, como quem dorme, se estica na cama e ultrapassa o comprimento da cama. Assustada, eu apressei-me para acordá-la, a toquei de leve chamando pelo seu nome, ela não deu nenhum sinal, fiquei desesperada e a sacudi, nada, nada de senhora Dóris, então gritei pelos corredores e logo os médicos vieram em meio à tempestade estrondando o quarto, enquanto eles tentavam reanimá-la, eu encarava aflita o vidro da janela fechado, onde dava para ver a água escorrendo fortemente por ele, à noite escura e fria lá fora. Um cheiro de morte envolveu o quarto, depois que a cobriram com um lençol branco passaram pela porta e me disseram “sinto muito”. Eu não sabia como agir, nunca havia perdido um paciente tão querido, nunca me apeguei tanto a um paciente, eu estava em choque, me sentei na cozinha do terceiro andar, com um copo de água na mão, quando Lalinda veio para ver como eu estava. Ela não sabia muito consolar pessoas, mas sabia que eu não precisava de palavras, então, fez uma expressão triste, colocou a mão em meu ombro esquerdo, e disse que se eu precisasse, ela estaria ali. Eu não precisava. Eu precisava mesmo de um trabalho onde eu não sentisse medo o tempo todo, de coisas que eu nem sei se existem, um trabalho que não tirasse de mim pessoas que me conquistaram, não sei que trabalho seria esse, mas a morte da senhora Dóris fez com que em menos de meia hora eu percebesse que ali eu não ficaria mais. Então toquei a mão de Lalinda que ainda repousava sobre meu ombro, sequei uma lágrima e disse que à ela que não voltaria mais naquele lugar. Então apressei-me, fui até meu armário, peguei minhas roupas, fui me trocar, nem se quer eu levaria aquelas roupas imundas para casa mais, toda lembrança dali seria apagada, esquecida. Fui tomada por uma grande tristeza, uma insatisfação, e queria correr dali, a adrenalina em meu corpo era alta demais, não cabia mais em mim, eu precisava sair.

  Assim que me troquei, Lalinda entrou no vestiário perguntando se era isso mesmo que eu queria, pediu que ao menos que eu terminasse o meu turno antes de ir, pois ela queria conversar comigo, mas naquele momento não poderia. Eu disse à ela que ligaria outra hora, puxei minha bolsa, peguei o celular, olhei a hora, 03:05 da madrugada de 31 de outubro. Era noite de halloween, eu nunca pensava muito nessa data, mas estando ali, em meio a uma tempestade e uma paciente morta, era a única coisa que eu conseguia pensar. Abandonei a cara de espanto, me recompus e sai às pressas para o corredor, foi quando uma imensa escuridão tomou conta do hospital, parei sem saber o que fazer, senti um arrepio gélido me escorrer o corpo todo e penetrar a minha alma, o medo tomou conta de mim, apertei o botão do celular e conseguia ver o rosto de Lalinda assustada, ela pegou a minha mão, ambas estavam muito frias, e fomos em direção ás escadas. Dessa vez Lalinda sentiu primeiro que alguém nos seguia, não podíamos apertar o passo, pois a luz do aparelho celular não iluminava muito bem, se caíssemos da escada ali no escuro, só pioraria as coisas. Nossa respiração estava ofegante e o frio havia passado, estávamos suando, sentíamos nossas mãos colando uma na outra. Naquele momento eu senti uma mão fria tocar os meus ombros como se fosse me dar uma massagem, mas apertou com força quase me forçando a sentar no degrau, Lalinda sem saber o que houve, imaginou e logo começou a gritar, ela correu escada a baixo na escuridão e eu fiquei ali de pé, quase caindo, sentindo o peso nos ombros, quando consegui respirar novamente, desci devagar, chorando e tremendo, senti que havia algo no chão, então com medo mesmo, apontei a luz do celular e vi que era Lalinda, caída, desmaiada e com uma enorme marca de mãos em seu pescoço, comecei a gritar, não sabia o que fazer, não poderia deixá-la ali, eu não teria a mesma atitude que ela, parece que ninguém nos ouvia, parece que o hospital estava vazio.

  Logo escutei o “toc toc toc” da bengala do velho nas escadas, eu senti muito, mas agora eu precisava abandonar Lalinda, continuei a descer devagar para não sofrer um acidente, apesar de péssima, eu gostaria de sair viva dali. O som apavorante se aproximava bem rápido, e meu coração já estava saltando pela garganta, tinha a sensação de que ao sair dali eu desmaiaria na porta. Continuei, e o som mais forte, mais perto, logo senti a mão gelada novamente, algo sussurrou em meu ouvido: “Bem-vinda ao andar 138”.

  Acordei no escuro, em um quarto de hospital, em uma cama dura, Lalinda estava presa na cama ao lado, eu não sabia o que estava acontecendo, quando me levantei, o meu corpo ficou...

FIM.

Relatos de que até hoje as duas almas vagam pelo andar 138 nas noites de halloween.

@escritoranatyelle

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