De homem para homem

 De homem para homem 

 

Rodolfo, foi um homem honesto, justo e compreensível, amava sua esposa Ana e suas filhas Clara e Victória, até que foi morto, foi assassinado cruelmente na frente de sua residência, baleado por uma pessoa que acelerou o carro e sumirá na primeira direita. Foi isso que dona Linda contou aos policiais quando foi depor, era vizinha da frente da casa do falecido, era amiga de Ana, tricotavam juntas tomando chá e as conversas fluíam sobre os filhos e maridos do bairro todo. Linda não viu a placa do carro e nem o rosto de quem o dirigia, não sabia se era homem ou mulher, ficou assustada em sua janelinha, paralisada por alguns segundos, não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Com sua fase amedrontada, misturada com o cabelo grisalho que voava ao vento naquela noite fria, viu seu vizinho ser baleado a sangue frio, sob a luz do poste e a lua clara que testemunhara com ela, aquele terrível fato. Só conseguiu depor, dias depois, pois ainda estava aflita com tudo que viu, Rodolfo era muito bom com a vizinhança, sempre ajudava as pessoas, sorridente e sensato, Ana nunca falara mal do marido para ninguém, para todos eles eram o casal perfeito, a família exemplar do bairro. A grande família Fortunato. 

    Depois do assassinato de Rodolfo, as coisas mudaram por ali. Nada mais parecia tranquilo, por mais que fosse, as pessoas andavam sem rumo, achando que estavam sendo perseguidas pelo bairro.  sabem como eu sei disso? Por que Rodolfo morreu por minha causa, foi minha culpa, eu voltei ao bairro algumas vezes para ver como estavam Ana e as crianças, mas não vi, não tive coragem de entrar, nem sequer toquei a campainha, eu não sabia mais como agir, Rodolfo era o meu alicerce, eu sabia conversar com todos quando estava em sua companhia. Sabia ouvir, opinar, dançar e sorrir, sabia mentir e disfarçar tão bem, que o nosso mal se tornara inocente em minha consciência, ele tinha família, eu também tenho, mas a minha é formada, por pai, mãe, avós e o Doug, nosso cachorro velho e querido, essa era a minha família, diferente da de Rodolfo, e bem diferente, trabalhávamos na mesma empresa, Rodolfo era gerente, e eu apenas um dos motoristas que levava e descarregava os caminhões de cervejas. Trabalhava ali a mais de cinco anos, e Rodolfo a quase dez, éramos família também, passávamos mais tempo trabalhando do que com nossos entes queridos, infelizmente era assim, mas não me arrependo de nada. Apenas de não ter guardado mais fundo o nosso segredo. Não desejava me casar com Rodolfo, nem esperava que ele fosse somente meu, eu sabia que ele era de Ana e das filhas, mas o pouco que eu tinha dele, era eterno e satisfatório, sabíamos que era errado, tentamos parar, mas nenhuma das três vezes tivemos sucesso, sempre voltávamos com o amor e o fogo mais acessos do que nunca, e a cada volta, o sentimento era maior.  

     Deixe-me apresentar para vocês, eu me chamo James e tenho trinta e sete anos, sou homossexual desde que me entendo por gente, nunca fui atraído por mulheres, sempre as admirei, achando belas e inteligentes, mas não quero tocar em uma de forma romântica, sinto que não seria eu ali. Quando adolescente, tentei namorar Eva, uma garota bem cobiçada do ensino médio, demos alguns beijos, e saiamos de mãos dadas, mas eu não era aquele homem, eu não queria aquilo, estava tentando deixar as pessoas com a visão que elas queriam ter, um adolescente, apaixonado pela garota mais bonita da escola, mas era faixada, eu nunca senti nada por ela, e sabia que a magoaria se continuasse naquilo, um mês depois, terminamos, ela me odiou por anos, mesmo depois de terminarmos a escola, ela andava pelo bairro falando poucas e boas de mim, mas eu em meu fundo, sabia que eu não era o cara que namorei ela, e também não era o cara que ela inventou para as pessoas, eu tinha uma realidade que ninguém sabia, vivia nas mentiras com medo do que eu perderia por isso, do que eu teria que sacrificar, eu não estava feliz, mas também não queria perder os meus amigos, o meu posto na empresa, não queria ver a cara que meus pais fariam ao descobrir que o filho deles não era quem eles imaginaram e conheceram a vida toda. Chorei muitas noites por essas questões, pensei muitas vezes em sentar e conversar com alguém sobre isso, pedir ajuda, talvez até um psicólogo, mas eu não conseguia agir, eu não sabia levantar a mão e abrir a porta do armário, estava preso, e não sabia nem o porquê eu queria estar preso. Talvez fosse medo, eu sempre fui medroso, não gosto de demonstrar emoções na frente das pessoas, não gosto de me vejam frágil, exposto, não gosto de sentir dor, mas quem é que gosta? E eu sabia que se contasse, se me abrisse, doeria demais, nessa idade, estava velho demais para contar essas coisas, o que pensariam de mim? Passei trinta e sete anos enganando as pessoas, elas nem deveriam me perdoar. Eu estava mais que perdido, depois da morte de Rodolfo, eu não sei se queria me encontrar. Me perderia para sempre e talvez seria bom. 

Tudo começou em uma noite no bar, saímos os cinco para beber, eu, Rodolfo, Brian e Elvis (mais dois motoristas) e Frederico, diretor da empresa. Apesar de serem superiores, Rodolfo e Frederico nos tratavam muito bem, éramos amigos íntimos, dividíamos nossas vidas ali na mesa diante de copos, riamos, fazíamos piadas, assim como qualquer grupo de amigos fazem quando se reúnem, isso foi no meu segundo ano na empresa, estava conhecendo os rapazes, mas já era bem visto no grupo, eu não me dava bem com o restante do pessoal, eles sim, mas sempre saíram reservados entre eles, e eu me encaixei ali muito bem. Entre copos e copos, vimos um casal, formado por duas mulheres, elas entraram no bar de mãos dadas, com roupas pretas, rasgadas, sorrindo, alteradas, compraram duas garrafas de cerveja e se retiraram. Então começou o assunto na mesa, cada um deu sua opinião sobre o assunto, Elvis não gostou muito da ideia, nos chamou de idiotas bêbados e se retirou.  Não tínhamos muito o que dizer, eles não entendiam como era difícil e libertador, eu entendia, mas não podia falar, todos desconfiariam de mim. Eram pessoas totalmente desinformadas conversando sobre um assunto que não entendiam, debochando e achando graça de sentimentos que não pertenciam a eles, mas as pessoas são assim, elas tomam para si, de forma trágica, algo que não pertence a elas, só porque elas não sentiriam, acham que todos não deveriam sentir também. E assim são feitos julgamentos alheios, que ferem, machucam, corroem, e nos tornam desumanos diante de uma sociedade nada humana, o qual dizem que o nosso erro é sentir o que sentimos. Somos seres únicos e isso nos dá direito de sermos diferentes uns dos outros, de não sermos cópias, e de não declararmos guerra entre nós mesmos apenas porque alguém não se apaixona pelo sexo oposto. Mas era o meu pensamento, meu sentimento, contra três, eu não venceria de forma alguma, fingi que era realmente da turma deles, e seguimos a noite. 

    Naquela mesma noite, já estávamos muito animados, após comer porções de camarão e tomar algumas doses e várias cervejas, Brian saiu primeiro, iria a uma festa com a esposa, e chegaria muito bêbado. Logo em seguida saiu Frederico, despedindo-se generosamente e deixando mais uma rodada paga para mim e Rodolfo, que ficamos ali, sozinhos falando sobre mulheres, coisas que Ana nunca imaginaria, e foi melhor assim. O músico tocava blues, aquele ambiente era agradável demais, íamos ali toda sexta-feira, os mesmo cinco homens, divertidos e trabalhadores. Eu e Rodolfo, saímos trocando os passos, rindo à toa de nossas piadas sem pé nem cabeça, nos abraçamos e andamos pela praça, bêbados e abraçados, éramos amigos, tínhamos nosso direito de parecermos loucos em uma praça pública. Sentamos em um banco de madeira, em frente ao hotel mais famoso da cidade e ficamos ali, observando a lua, sua forma, seu brilho, o jeito que ao mesmo tempo ela iluminava todos, era uma iluminação diferente em cada ser vivo que estava presente ali, sob ela. O tempo foi passando e nós ali fomos ficando. 

Rodolfo começou a chorar, eu nunca tinha visto aquele homem tão forte, tão bem sucedido, tão carismático, ser tão frágil daquela forma, ele soluçava, perguntei o que havia acontecido, ele não me respondeu, estávamos em silencio a um bom tempo, comecei a sentir que estava incomodando, tentei me levantar para ir embora e deixá-lo em seu leito de lágrimas, com seus pensamentos íntimos, mas Rodolfo me impediu, colocou a mão em minha coxa e disse para que eu ficasse, que não era nada demais e logo passaria. Foi dito e feito, alguns minutos em silencio novamente, ele parou de chorar, sorriu para a lua, olhou para mim, com aqueles olhos grandes e arregalados, o cabelo preto com tinta, a barba por fazer, sorrindo. Meu coração acelerou, eu não sabia o que estava acontecendo, mas me passou uma breve ideia, aquele homem não podia ser igual a mim, ele tinha esposa e filhos, como ele conseguiu e eu não? Ele foi capaz de tocar romanticamente uma mulher e viver ao seu lado com filhos e tudo que uma família tem direito, ele dormia com ela todos os dias, se declarava romanticamente, e gostava de mim? Eu estava enlouquecendo, senti um vulto de loucura passar pela minha cabeça, era impossível, todos esses pensamentos me vieram em apenas meio segundo, rapidamente, forte, bravo, me deixando confuso, brincando comigo. Rodolfo era um homem lindo, atraente, charmoso, dono de um sorriso estranhamente lindo, inteligente, mas nunca o vi daquela forma, pois eu sabia respeitar os meus amigos, não imaginaria nada assim sobre ele. Enquanto eu pensava, sua mão já estava em minha nuca, e nos beijamos, ali, em público, sob a lua, em frente ao hotel, sem ninguém nos observando, as pessoas não estavam mais ali, já era tarde, não sabíamos mais das horas, não sabíamos mais de nada, só que aquele beijo despertou em mim tudo que deixei adormecido durante anos. Eu não estive com um homem depois dos meus vinte e um, meu último romance terminou mal, ele queria me assumir em público, seus pais o aceitavam, o amavam do jeito que era e o apoiavam, queriam me conhecer, fizeram um jantar, e eu não apareci, não apareci nunca mais daquela forma, nunca mais fui eu mesmo, nem para ele, nem para ninguém. Eu o queria muito, mas eu não estava pronto para me assumir. 

    E ali estava eu e o meu gerente, casado, quando pensei isso, meu sentimento despertado se foi, eu me retirei do beijo, levantei cabisbaixo, pedi desculpas e sai em meio a grande praça, sozinho a noite, Rodolfo chamou pelo meu nome duas vezes, eu apertei os passos e sai em direção ao ponto de ônibus 

No dia seguinte, não tive coragem para enfrentar ninguém, liguei para o meu supervisor, e disse que minha mãe não estava bem de saúde, a levaria ao médico. No horário de almoço, Rodolfo telefonou para saber como estava a minha mãe, ele era o gerente, sabia de tudo na empresa, fora avisado pelo meu supervisor o motivo da minha falta. Eu precisava mentir melhor, então menti. Ele desejou melhoras a minha mãe, e ofereceu sua ajuda no que precisasse, não tocou no assunto que eu mais temia. Eu não ia ficar de caso com um homem casado, dentro do meu ambiente de trabalho, isso era o cumulo do cumulo, ia contra tudo que eu acreditava. Rodolfo tinha enlouquecido e eu não faria parte disso. 

    Dois dias depois, eu retornei à empresa, sem saber como encarar Rodolfo, mas ele me tratou como se nada tivesse acontecido, então seguimos nossas vidas, sexta-feira de bar, semana de trabalho, nunca mais sai por último do bar com Rodolfo, eu sempre era o segundo a ir embora, seja lá quem fosse o primeiro e os próximos. E foi assim, até que se passaram dois meses, e era o aniversário de Victória, faria quatro anos de vida, a filha do homem que eu beijei, infelizmente eu não poderia recusar o convite, ele saberia que eu estaria agindo estranho, então aceitei para parecer normal. Tudo o que eu menos era ali, eu não era mais normal com Rodolfo, eu queria beija-lo de novo, queria toca-lo, sabia que não podia, mas pensar demais, me fez querer ele novamente, quanto menos eu tentava pensar, mais os pensamentos vinham. Eu tentei de todas as formas esquecer e deixar para lá. Mas não deu. 

      Eu conheci Ana, a mulher que dormia com o homem que eu agora desejava, eu conheci as meninas, eram encantadoras, conversamos muito, e tudo parecia tão natural, as meninas me adoraram, brinquei com elas por muito tempo, até a hora de ir embora, Ana gostou tanto de mim, que me convidou para retornar quando eu quisesse, Rodolfo concordou com a esposa. A festa foi maravilhosa, eram uma família maravilhosa, ali eu percebi que só me cabia como amigo, nada mais, eu não separaria Rodolfo daquelas três mulheres maravilhosas que ele tinha em sua vida, eu não poderia mais desejá-lo, Rodolfo era proibido para mim. 

O coração não entende o que é proibido, ele relutava. 

    Não fiz nada para que Rodolfo me notasse, só queria tempo para esquecer aquele homem, aquele beijo, e seguir com a amizade forte que tínhamos. Mas Rodolfo não queria o mesmo. Dias depois do aniversário, eu guardei o caminhão, tarde, em uma quinta feira, me aprontei para ir embora, baixei a porta, e lá estava ele, sorrindo atrás de mim, eu sorri de volta, éramos amigos afinal, para mim. Rodolfo não hesitou, me beijou novamente, e eu não conseguia resistir, meu desejo era todo dele, e dessa vez eu não tentei resistir, já estava entregue, e ali ficamos entre os beijos, nosso momento era mágico, era tudo que eu queria desde o último, mas eu não podia, sabia que aquela teria que ser a última vez, mas depois eu o avisaria, naquele momento, eu só queria corresponder e guardar a memória para sempre.   

Isso ocorreu mais vezes durante anos. Quando estávamos quase a ponto de explosão, em uma última vez, a luz da garagem acendeu, e lá estava Elvis, nos olhando sem acreditar no que estava vendo. Sua expressão bastava, Rodolfo não quis se explicar, mas eu quis, fui até Elvis, ele de forma alguma deixou que eu tocasse nele, ou que dirigisse uma palavra a ele. Disse que tinha nojo de nós, e que a amizade estava acabada, que no dia seguinte a firma toda saberia. E assim foi feito. No dia seguinte eu e Rodolfo éramos alvos de piadas, porém sabíamos que o assunto não passaria dali para fora. 

Vivemos assim por mais algum tempo, até que eu me demiti, Rodolfo não queria, mas eu não aguentava mais, trair Ana, minha amiga, ser debochado por homens que não sabiam o que estavam dizendo, na verdade sabiam, isso que é pior. Eu não suportava mais aquilo, rompi com Rodolfo e sumi por alguns dias, eu não erraria nunca mais, não poderia. 

Só retornei quando precisei depor, todos ficaram sabendo do nosso caso, inclusive Ana, ela me odiou, mas odiou mais ainda Rodolfo depois de morto, não sabemos quem o matou, nem o porquê, mas sei que foi pelo nosso envolvimento, Rodolfo não tinha problemas com ninguém, ele que nos uniu, e ele nos separou. Eu lutei contra tudo para deixa-lo em paz ao lado da família, não o resistia, por isso pedi demissão, hoje suspeitam que eu possa ter matado ele, porque eu mataria o homem que eu mais desejei na vida? 

Ou porque eu não mataria?  

Agora é com vocês. O que acham?

Estou de malas prontas, nunca mais voltarei a essa cidade. E nunca esquecerei Rodolfo. 

 

Comentários

  1. Oieee, cheguei aqui através do Desafio da Escrita Criativa. Parabéns!!!

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  2. Oi!!! Cheguei aqui através do desafio de escrita criativa. Parabéns!!!

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